DO LIVRO: FICÇÕES de Jorge Luiz Borges – Um dos textos mais bonitos sobre o duelo entre Martim Fierro X Moreno. O Desafio pode ser ouvido na Sala de Música.
Recabarren , estendido na cama, entreabriu os olhos e viu o céu azul refletido no teto do quarto.
Da outra peça chegava um acorde de guitarra. O executor era um negro que havia aparecido uma noite com pretensões de cantor e que havia desafiado um forasteiro a uma larga trova de contraponto. Vencido, seguia frequentando a venda, como se estivesse esperando alguém.A força de termos pena das dores dos heróis das novelas acabamos nos apiedando demais com nossas próprias dores. Não assim com o sofrido Recabarren, que aceitou a paralisia como antes havia aceitado o rigor e as solidões da América.
Um ponto despontou no horizonte e cresceu até ser um ginete, que vinha, ou parecia vir, até a venda. Recabarren viu o sombrero, o largo poncho escuro, o cavalo mouro, mas não a cara do homem, que por fim, diminuiu o galope e veio se aproximando troteando. Recabarren não o viu mais, mas o ouviu pigarrear, apear, atar o cavalo no palanque e entrar com passo firme na venda.
Sem tirar os olhos da guitarra, onde parecia buscar algo, o negro disse com doçura:- Já sabia, senhor, que podia contar consigo.-
O outro, com voz áspera , respondeu:- E eu, contigo, moreno. Te fiz esperar uma porção de dias, mas aqui estou.Ouve um silêncio. Ao fim, o negro respondeu: – Estou acostumado a esperar.-Estou esperando a sete anos. O outro, explicou, sem pressa: Passei sete anos sem ver meus filhos. Os encontrei esses dias, e não quis aparecer como um homem que anda trocando punhaladas.
– O Negro disse: Espero que os tenha deixado com saúde.-Lhes dei bons conselhos, que nunca são demais, e não custam nada. Disse a eles, entre outras coisas, que o homem não deve derramar o sangue de outro homem.Um lento acorde precedeu a resposta do negro: -Fez bem. Assim não se parecerão a nós.
– Pelo menos a mim, disse o outro e concluiu como se pensasse em voz alta: O destino há querido que eu matasse e agora, outra vez, me põe o punhal na mão.O negro, como se não o ouvisse, observou: – Com o Outono se vão encurtando os dias.Com a luz que resta, me basta. Respondeu o outro, ficando em pé. Se curvou diante do negro e lhe disse com a voz cansada: – Deixa em paz a guitarra, que hoje te espera outro tipo de desafio.
Os dois se encaminharam para a porta. O Negro ao sair, murmurou: – Talvez neste me vá tão mal como no primeiro. – O outro respondeu, com seriedade: -No primeiro você não foi mal. O que passou é que andavas ansioso para chegar ao segundo.
Há uma hora da tarde em que a planície está por dizer algo; nunca o diz ou talvez o diz infinitamente e não entendemos, ou entendemos mas, é intraduzível como uma música…
De sua cama, Recabarren, viu o fim. Em uma investida o negro desfechou um golpe na cara e se inclinou em uma punhalada profunda, que penetrou o ventre. Depois veio outra e Fierro não se levantou. Imóvel, o negro parecia vigiar sua lenta agonia. Limpou a faca com sangue no pasto e voltou lentamente para a venda sem olhar para trás.
Cumprida sua tarefa de justiceiro, agora era nada. Melhor, era o outro: – Não tinha destino sobre a terra e havia matado um homem.
(Ficções – Jorge Luis Borges)