Milan Kundera

QUANDO O LIVRO VIRA FILME. QUANDO A ARTE ENCONTRA A VIDA. 

– Milan Kundera, do livro “A insustentável leveza do ser”. [tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca]. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

“Só as perguntas mais ingênuas são realmente perguntas sérias. São as interrogações para as quais não há resposta. Uma pergunta para a qual não há resposta é uma cancela além da qual não há mais caminhos. Em outras palavras: são precisamente as perguntas para as quais não há respostas que marcam os limites das possibilidades humanas e que traçam as fronteiras da nossa existência.”

“Os personagens de meu romance são minhas próprias possibilidades que não foram realizadas. É o que me faz amá-los, todos, e ao mesmo tempo a todos temer. Uns e outros atravessaram uma fronteira que eles atravessaram (fronteira além da qual termina o meu eu). E é somente do outro lado que começa o mistério que o romance interroga. O romance não é uma confissão do autor, mas uma exploração do que é a vida humana na armadilha que se tornou o mundo…”

“O eterno retorno é uma idéia misteriosa e, com ela, Nietzche pôs muitos filósofos em dificuldade: pensar que um dia tudo vai se repetir como foi vivido e que tal repetição ainda vai se repetir indefinidamente! O que significa esse mito insensato?

O mito do eterno retorno afirma, por negação, que a vida que desaparece de uma vez por todas, que não volta mais, é semelhante a uma sombra, não tem peso, está morta por antecipação, e por mais atroz, mais bela, mais esplêndida que seja, essa atrocidade, essa beleza, esse esplendor não têm o menor sentido.”

“Digamos, portanto, que a idéia do eterno retorno designa uma perspectiva em que as coisas não parecem ser como nós as conhecemos: elas aparecem para nós sem a circunstância atenuante de sua fugacidade. Com efeito, essa circunstância atenuante nos impede de pronunciar qualquer veredicto. Como condenar o que é efêmero? As nuvens alaranjadas do crepúsculo douram todas as coisas com o encanto da nostalgia; até mesmo a guilhotina.”

“O mais pesado dos fardos nos esmaga, verga-nos, comprime-nos contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o fardo do corpo masculino. O mais pesado dos fardos é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da realização vital mais intensa. Quanto mais pesado é o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais real e verdadeira ela é.

Em compensação, a ausência total de fardo leva o ser humano a se tornar mais leve do que o ar, leva-o a voar, a se distanciar da terra, do ser terrestre, a se tornar semi-real, e leva seus movimentos a ser tão livres como insignificantes.

O que escolher, então? O peso ou a leveza?”

“Foi a pergunta que Parmênides fez a si mesmo no século VI antes de Cristo. Segundo ele, o universo está dividido em pares de contrários: a luz/a escuridão; o grosso/o fino; o quente/o frio; o ser/o não-ser. Ele considerava que um dos pólos da contradição é positivo (o claro, o quente, o fino, o ser), o outro, negativo. Essa divisão em pólos positivo e negativo pode nos parecer de uma facilidade pueril. Exceto em um dos casos: o que é positivo, o peso ou a leveza?

Parmênides respondia: o leve é positivo, o pesado é negativo. Teria ou não teria razão? A questão é essa. Só uma coisa é certa. A contradição pesado/leve é a mais misteriosa e a mais ambígua de todas as contradições.”

“Nunca se pode saber o que se deve querer, pois só se tem uma vida e não se pode nem compará-la com as vidas anteriores nem corrigi-la nas vidas posteriores.”

“E, de novo, veio-lhe à cabeça uma idéia que já conhecemos: A vida humana só acontece uma vez e não poderemos jamais verificar qual seria a boa ou má decisão, porque, em todas as situações, só podemos decidir uma vez. Não nos é dada uma segunda, uma terceira, uma quarta vida para que possamos comparar decisões diferentes […]”

“Parece que existe no cérebro uma zona específica, que poderíamos chamar memória poética, que registra o que nos encantou, o que nos comoveu, o que dá beleza à nossa vida. Desde que Tomas conhecera Tereza, nenhuma outra mulher tinha o direito de deixar a marca, por efêmera que fosse, nessa zona de seu cérebro. Tereza ocupava como déspota sua memória poética e dela varrera todos os traços das outras mulheres.”

“[…] O amor começa por uma metáfora. Ou melhor: o amor começa no instante em que uma mulher se inscreve com uma palavra em nossa memória poética.” 

“Muitas vezes nos refugiamos no futuro para escapar do sofrimento. Imaginamos uma linha na pista do tempo, e pensamos que a partir dessa linha o sofrimento presente deixará de existir”

“Aquele que deseja continuamente ‘elevar-se’ deve esperar um dia pela vertigem. O que é a vertigem? O medo de cair? Mas porque sentimos vertigem num mirante cercado por uma balaustrada? A vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio embaixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual logo nos defendemos aterrorizados.”

 “É por isso que a palavra compaixão em geral inspira desconfiança; designa um sentimento considerado de segunda ordem que não tem a ver com o amor. Amar alguém por compaixão não é amar de verdade.”

“Acordou e viu que estava só em casa. Saiu e tomou a direção do cais. Queria ver o Vltava. Queria sentar-se em sua margem e olhar a água, pois a visão de água fluindo acalma e cura. O rio corre de século em século, e as histórias dos homens se desenrolam na margem. Acontecem para ser esquecidas amanhã e para que o rio não pare de correr” 

“Quem vive no exterior caminha num espaço vazio acima do solo sem a rede de proteção que o país de origem estende a todo ser humano, onde ele tem família, colegas, amigos, e onde é compreendido sem dificuldade no idioma que sabe falar desde a infância.”

“A verdadeira bondade do homem só pode se manifestar com toda a pureza e com toda a liberdade em relação àquele que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, situado num nível tão profundo que escapa a nosso olhar) são as relações com aqueles que estão à nossa mercê: os animais.”

“Só o acaso pode nos parecer uma mensagem. Aquilo que acontece por necessidade, aquilo que é esperado e se repete cotidianamente é coisa muda apenas. Somente o acaso tem voz. Tenta-se ler no acaso como as ciganas lêem no fundo de uma xícara os desenhos deixados pela borra do café. (…) O acaso tem seus sortilégios, a necessidade não. Para que um amor seja inesquecível, é preciso que os acasos se encontrem nele desde o primeiro instante como os pássaros nos ombros de São Francisco de Assis.”

“[…] E os amores são como os impérios: desaparecendo a idéia sobre a qual foram construídos, morrem com ela.”

 

Tomas (Daniel Day-Lewis) é um neurocirurgião vivendo em Praga, Checoslováquia, em 1968. É um daqueles homens que possui grande facilidade para tirar as roupas das mulheres. Apesar dos inúmeros casos, sua companhia mais frequente é a artista Sabina (Lena Olin), uma mulher de vida tão livre e sem amarras quanto ele. Tomas e Sabina se entendem perfeitamente: eles só querem sexo um do outro (de preferência com ela usando um chapéu). Um dia ele é chamado para fazer uma operação no interior e conhece Tereza (Juliette Binoche), uma moça adorável e um pouco ingênua que acaba se apegando a ele. Tereza, entretanto, não é como Tomas: segundo suas próprias palavras, ela “não compreende como se pode fazer amor sem estar apaixonado”. Ao mesmo tempo, ocorre a invasão soviética da Checoslováquia – e a vida leve destes personagens é perturbada para sempre.

Baseado no livro de Milan Kundera, “A Insustentável Leveza do Ser” (1988) é mais uma grande realização do produtor Saul Zaentz, cujo histórico no Oscar é vencedor (Ele produziu “Um Estranho no Ninho” e “Amadeus”, vencedores em 1975 e 1984 respectivamente, e voltaria a ser premiado com “O Paciente Inglês” em 1996). O diretor Phillip Kaufman, com seu toque distintamente mais europeu que americano, explora sem pudores os temas de sexualidade e liberdade da história, e o elenco é fantástico. Day-Lewis é perfeito, Olin nunca esteve mais interessante e Binoche cativa e conquista o espectador desde sua primeira aparição.

 

“O tempo humano não gira em círculos, mas avança em linha reta. É por isso que o homem não pode ser feliz, pois a felicidade é o desejo de repetição.”

PS: EXCERTOS DO LIVRO COPIADOS DA REVISTA PROSA, VERSO E ARTE.

 

A estupidez das pessoas vem de ter resposta para tudo.  A sabedoria do romance vem de ter perguntas para tudo.  Quando Dom Quixote sai pelo mundo, isso se torna um mistério diante de seus olhos.  Tal é o legado do primeiro romance europeu para toda a história do romance que veio depois.  O romancista ensina o leitor a apreender o mundo como uma questão.  Há sabedoria e tolerância nesta atitude.  Num mundo construído sobre verdades sacrossantas, o romance está morto.  O mundo totalitário, seja baseado em Marx, no Islão ou em qualquer outro fundamento, é um mundo de respostas, e não de perguntas.  O romance não tem lugar nele.  Em todo o caso, parece-me que hoje, em todo o mundo, as pessoas preferem julgar a compreender, responder a perguntar.  Assim, a voz do romance mal pode ser ouvida no tolo barulho das certezas humanas.

Milan Kundera,
 Em conversa com Philip Roth.