Uma conversa com Borges.
A Argentina é um país de eufemismos. É o caso do termo “desaparecido”. A realidade é bem mais terrível: as pessoas foram seqüestradas, torturadas e assassinadas. É um filme que termina muito mal. Os militares estavam loucos.
Ramón Chao – 1 de agosto de 2001
Bom dia, Sr. Borges. Agradeço por me receber.
Tenho 84 anos. Todos meus amigos desapareceram. Quando penso neles, penso em fantasmas. Somos todos fantasmas, não é? Em 1955, fiquei cego e deixei de ler jornais. Não tenho muitas oportunidades de conversar com as pessoas. Por isso, quando dou uma entrevista, eu é que agradeço ao entrevistador. Mas aviso sempre: sou muito categórico, às vezes até desagradável. Isso talvez seja uma reação à minha timidez, pois nunca estou muito seguro do que digo. Quando afirmo alguma coisa, estou apenas propondo uma possibilidade. Por isso sugiro, antes de começar, que registremos aqui algumas expressões de dúvida, como “talvez”, “provavelmente”, “é possível que” etc. E o leitor as usará quando achar oportuno.
Não se preocupe, senhor Borges.
Pode me chamar simplesmente de Borges. Eu já o considero um amigo.
O sr. é capaz de colocar um rosto sobre uma voz?
Não, eu não preciso fazer isso. Whitehall dizia que todas as idéias, todos os sentimentos podiam ser expressos pela palavra. Eu gostaria de ter conservado a visão, mas a voz é tão pessoal que o fato de não ver você não tem tanta importância. Existe uma afinidade entre as pessoas difícil de explicar. Minhas relações com os objetos são mais problemáticas, pois os objetos não falam. Só posso tocá-los. Deveria ter sido escultor. É claro que eu preferiria ver você, mas preciso encontrar argumentos para tolerar minha cegueira, não é? De outra forma, seria tomado pela piedade, o que é detestável. Bernard Shaw dizia que a piedade degrada tanto quem se apieda de alguém quanto quem é objeto dela.
Meu pai, um psicólogo anarquista, me mostrou o valor da poesia, o fato das palavras serem sons musicais, mágicos e complexos
Esse estoicismo se deve à sua situação pessoal ou à sua herança familiar? O sr. descende de uma família de militares. Muito corajosos, bem entendido.
Meu avô, o general Borges, morreu em 1874, numa batalha contra os índios. Com sua vanguarda dizimada, ele ficou sozinho, sobre seu cavalo branco, e avançou a trote sobre o inimigo, que o perfurou de balas. Dito isso, não há nenhuma razão para supor que um militar é corajoso. Um indivíduo que passa a vida de caserna em caserna para obter promoções, e que estuda estratégia, não tem necessidade de ser corajoso. E, claro, não é preparado para governar. A idéia de comandar e ser obedecido é própria de uma mentalidade infantil. Isso explica por que os ditadores são pessoas imaturas.
É curioso. Com sua genealogia de guerras e de violências, o sr. é uma pessoa pacífica, que detesta a violência, que coloca condicionais em todas as frases. É por isso que o sr. se libera na sua obra, feita de crimes, de duelos e de traições?
Nunca tinha pensado nisso. É possível que eu seja, de algum modo, a memória de meus ancestrais. Pode ser que através de mim eles tentem apagar suas vidas de guerras e de violência.
Os espanhóis têm do que se orgulhar na sua língua. Mas não a sabem falar. Eles a pronunciam como se se tratasse de uma língua estrangeira
Quando o sr. começou a pensar em ser escritor?
Desde sempre. Eu tinha três ou quatro anos quando comecei a escrever. Meu pai, um psicólogo anarquista, me mostrou o valor da poesia, o fato das palavras não serem simplesmente meios de comunicação, e sim sons musicais, mágicos e complexos. Eu já estava com vinte e quatro anos e ele me aconselhava a continuar lendo, a não escrever enquanto não tivesse verdadeiramente necessidade de fazê-lo. E, principalmente, me aconselhava a não ter pressa em publicar. Ele próprio tinha escrito um romance, que nunca editou. No fundo, eu me tornei escritor porque essa era a vocação que ele não tinha conseguido realizar. Segui todos os seus conselhos. Digo isso com uma certa nostalgia, pois desde 1955 minha cegueira me impede de ler. Nesse ano aconteceram duas coisas capitais na minha vida: fui nomeado diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires e, quase simultaneamente, fiquei cego. Duzentos mil volumes ao alcance da minha mão… sem que eu os pudesse ler.
O sr. realizou a vocação do seu pai, mas não completamente. Seu pai estava errado. O sr. mesmo reconhece isso no prefácio de Ficções, quando diz que é inútil querer desenvolver em quinhentas páginas o que pode ser resumido em vinte ou trinta.
É verdade, eu não li muitos romances. Li Conrad, Dickens, Dostoïevski, Melville… e Dom Quixote, como todo mundo. Seria ilógico que, não sendo um leitor de romances, tentasse escrevê-los.
A vida é cheia de paradoxos. Deram ao sr. o prêmio Cervantes apesar de o sr. não gostar da sua língua, o espanhol.
Eu nunca disse isso! Eu posso ter dito que o francês é uma língua muito bonita, com torneados que não se encontra em nenhuma outra, como os y em “j’y suis, j’y reste” ou os en de “nous en reparlerons”. Mas, em espanhol, nós temos os verbos ser e estar, que separam o metafísico do circunstancial. Temos também uma mobilidade invejável de adjetivos e uma construção mais suave da frase. Os espanhóis têm do que se orgulhar na sua língua. Mas não a sabem falar. Eles a pronunciam como se se tratasse de uma língua estrangeira.
Então de onde vem essa opinião tão difundida de que o sr. não se sente à vontade em espanhol?
Gostaria que me julgassem por aquilo que escrevi, não por aquilo que eu possa ter dito. Ou por aquilo que me forçaram a dizer, pois às vezes, por timidez, não ouso contradizer meu interlocutor. Em compensação, quando escrevemos, podemos nos corrigir até o infinito. Na verdade, essa opinião foi tirada de uma conversa com Pablo Neruda, na única vez em que nos encontramos. Durante duas horas, ficamos brincando de nos chocar. Ele disse: “Não se pode escrever em espanhol.” E eu respondi: “Você tem razão, é por isso que ninguém jamais escreveu nessa língua.” Então, ele sugeriu: “Por que não escrever em inglês ou francês?” “Tudo bem, mas será que merecemos escrever nessas línguas?” Então, decidimos que tínhamos que nos resignar a continuar escrevendo em espanhol.
Estranha conversa entre duas pessoas que não se entendiam.
Ele tinha escrito um poema contra os tiranos da América Latina, consagrando algumas estrofes aos Estados Unidos, mas nenhuma a Perón. Supunha-se que estivesse tomado por uma nobre indignação mas, na realidade, estava pensando num processo que estavam movendo contra ele na Argentina e não queria se indispor com o governo do meu país. Ele era casado com uma mulher argentina e sabia muito bem o que se passava, não é? Mas não queria que o poema lhe causasse problemas. Quando fui ao Chile, ele se eclipsou para não me ver, e fez muito bem. As pessoas queriam nos opor. Ele era um poeta comunista chileno e eu um poeta conservador argentino. Eu era contra os comunistas.
O que o sr. condena nos comunistas?
Não posso concordar com uma teoria que prega a dominação do Estado sobre o indivíduo. Mas tudo o que acabei de contar não tem nada a ver com a qualidade da poesia de Neruda. Quando, em 1967, o Prêmio Nobel foi dado a Miguel Angel Asturias, eu disse, na mesma hora, que era Neruda que o merecia. Aliás, ele acabou ganhando, em 1971. Não me parece justo julgar um escritor por suas idéias políticas. Pois, se é verdade que Rudyard Kipling defendeu o Império britânico, também é preciso reconhecer que ele foi um grande escritor. Eu sou contra a democracia, que não passa de um abuso de estatísticas.
Durante um certo tempo o sr. também ignorou os crimes dos militares em seu próprio país.
Sob o risco de me repetir, a explicação deveria ser fácil. Quando, como eu, se comete a imprudência de ultrapassar os oitenta anos, fica-se muito só. Como você sabe, eu não leio jornais e conheço muito pouca gente. Apesar disso, já tinha ouvido falar dos “desaparecidos”. Meus amigos me garantiam ? sinceramente, acredito ? que se tratava de turistas que simplesmente mudavam de lugar, que não havia “desaparecidos”. Acreditei neles até que as mães e avós da Praça de Maio viessem à minha casa. Entre elas, estava a prima dos proprietários do La Prensa, um dos jornais mais importantes da Argentina. Percebi logo que essa mulher não era uma atriz. Ela me disse que sua filha tinha “desaparecido” haviam seis anos. Queria que lhe dissessem a verdade, mesmo que sua filha estivesse morta. Procurou os ministros, o chefe da polícia, o Vaticano, e recebia sempre a mesma resposta: “A senhora terá sua filha em casa dentro de seis meses.” Mas nunca mais a viu. Os militares argentinos estavam completamente loucos. Inventaram a guerra das Malvinas e ninguém sequer sabia onde ficava esse arquipélago. Perderam a guerra, como era previsível, mas não se falou em derrota, nem de capitulação. Falaram em “cessação das hostilidades”. É um país de eufemismos! Como o termo “desaparecido”. A realidade é bem mais terrível: eles foram seqüestrados, torturados e assassinados. É um filme que termina muito mal.
Antes de ficar cego o sr. foi crítico de cinema. Tem saudade dessa época?
Não muito, porque o cinema deixou de ser mudo.
Antes era melhor?
Claro! Depois veio o cinema em technicolor. Outra calamidade.
De que filme o sr. se lembra?
De um filme de Josef von Sternberg sobre os gangsters de Chicago1. Era um filme épico. Poucos dias depois, Carlos Gardel ia cantar nessa mesma sala de cinema e eu não quis ir ouvi-lo, com medo de perder a impressão que o filme me tinha causado. Perdi a apresentação de Carlos Gardel.
O sr. acha que Carlos Gardel encarna o que pomposamente se chama de alma argentina?
A alma argentina foi várias vezes pervertida e corrompida. Principalmente pela abominável ditadura do general Peron. Eu nunca fui peronista. O país mudou muito. Neste momento, estamos num período de convalescença. E vamos esquecendo os anos ? certamente considerados ridículos, pelo resto do mundo ? que para nós foram assustadores e infernais.
De todo modo, Gardel continua a ser um símbolo da Argentina. O sr. não diria que ele está cantando cada vez melhor?
Quando eu era criança, os homens dançavam o tango entre si. As mulheres, não, pois as letras eram escabrosas. Eles cantavam em voz baixa, de um modo deliberadamente inexpressivo, principalmente quando se tratava de crimes e de sangue. Tinham uma timidez própria dos argentinos. Até que apareceu o francês Carlos Gardel. Sua grande descoberta, além do charme da voz, foi dramatizar o tango. Lembro-me que estava com minha mãe, nos Estados Unidos, e ouvimos um tango. O tango não nos agradava mas, apesar disso, poucos instantes depois estávamos chorando.
Neste momento, estamos num período de convalescença. E vamos esquecendo os anos que para nós, argentinos, foram assustadores e infernais
Se o sr. fosse surdo, não teria podido apreciar o tango nem a milonga.
Eu gostaria de ter sido músico, mas sou apenas um homem das letras. Talvez minha frustração se deva à minha surdez musical. Não entendo nada de música: só o violão, de que gosto muito. Em geral, os gauchos dos pampas não tocam bem o violão, mas passam horas a afiná-la, o que já produz uma espécie de música elementar.
Em compensação, a genealogia é uma das suas paixões , não é?
Para mim, é um gênero literário. Os ingleses têm um belo ditado: “Sábia é a criança que sabe quem é seu pai.” E mais sábio ainda é quem conhece a origem dos tataravós, não?
O sr. já me falou do seu pai. E sua mãe?
Era inglesa e eu falava inglês com ela. Quando era muito jovem, levaram-me para a Suíça e eu falava francês com a governanta e aprendia latim com um professor. Com meu pai, falava e escrevia em espanhol. Por isso, durante algum tempo, eu pensava que cada pessoa tinha sua própria língua. Seria curioso, centenas de milhões de idiomas. E talvez seja verdade ? seria por isso que não nos compreendemos.
O sr. escrevia como seu pai, ou seu pai escrevia como o sr.?
Eu tinha um estilo muito barroco, como ele. Quando começamos a escrever, imitamos nossos mestres, por modéstia ou por ambição. Acho que o escritor encontra seu estilo pessoal depois de muitos anos. Quando era jovem, eu copiava meu pai, procurava palavras arcaicas, inesperadas. Hoje em dia, evito as metáforas, as palavras difíceis, tudo que possa exigir a consulta a um dicionário. Procuro atingir o fundo comum da língua, além das limitações temporais ou geográficas.
O sr. acha que conseguiu chegar a ser Borges, agora que o sr. tem uma obra?
O que você diz é tocante, mas peço-lhe o favor de colocar obra entre aspas. Eu não tenho uma obra, e sim fragmentos. Não sei por que sou célebre. No começo, achava que jamais iria publicar. Depois, achei que eu era uma superstição argentina. Agora devo me resignar e pensar que não sou um impostor: recebi a Legião de Honra na França, fizeram-me doutor honoris causa em várias universidades… Mas o que Borges gostaria seria de ser louvado mais por aquilo que não escreveu do que pelo que escreveu. Quer dizer, pelo que apagou, mas pode ser encontrado nas entrelinhas. É possível fazê-lo graças a Cervantes e às literaturas francesa e inglesa, porque, em geral, o espanhol é muito grandiloqüente. Tenho sempre na cabeça uma frase de Boileau: “Aprendi com Molière a arte de fazer versos simples com dificuldade.” Para mim, poucos escritores atingiram a perfeição, salvo talvez Kipling, em seus contos. Elas não têm uma palavra a mais. Procuro aprender com ele, com toda a modéstia. Ser, ao mesmo tempo, simples e complexo. É claro que alguns assuntos exigem o romance, como a invasão da Rússia por Napoleão. Mas não pretendo escrever romances.
E, principalmente, o sr. não vai ler Tolstoi…
Eu comecei a ler Guerra e Paz, mas abandonei quando as personagens se tornaram inconsistentes. Georges Moore disse que Tolstoi tinha feito uma descrição tão minuciosa de um júri, que quando chegou ao quarto membro não conseguia mais se lembrar das características do primeiro. Como já faz um quarto de século que não enxergo, lêem para mim ? e prefiro as releituras. Para escrever, contento-me em ditar. Aos 84 anos, tenho muitos projetos.
Na última vez que vim ver o sr., com Ignacio Ramonet, sua paixão era a etimologia.
Continua sendo. A origem das palavras vai mais longe que a das gerações. Veja a palavra saxã bleich, que significa incolor. Evoluiu em dois sentidos opostos. Em espanhol, para o branco (blanco), em inglês para o negro (black). E sabe de onde vem a palavra jazz? Do dialeto crioulo2 de Nova Orleans, onde to jazz significava fazer amor, mas de uma maneira rápida, espasmódica, como sugere essa onomatopéia. Acabei de aprender que a palavra cosmético vem do grego: ordenar o mundo. Embelezar o rosto, como se se tratasse do universo. Curioso, não é?
O professor Pascual acaba de me contar que Canárias não quer dizer que havia muitos desses pássaros nessas ilhas. Elas foram batizadas no século I por um rei da Mauritânia que tinha visto cães (canes) enormes lá.
Que desilusão! Mas o sr. me ensinou alguma coisa. Outro dia, seu amigo Ramonet me explicou a etimologia do Gabão, que vem do português gabão, casaco, sobretudo.
Que memória o sr. tem, Borges! Quase como a de Funes, o herói de um de seus contos.
Ah, isso não! Funes morreu esmagado por sua memória. Esse conto é uma metáfora da insônia.
É por isso que nos angustia tanto.
Sim, a falta de sono é terrível. Sofri de insônia por um ano, em Buenos Aires. Foi um verão de noites longas, com o zumbido dos mosquitos… como se um inimigo diabólico tivesse me condenado.
Não foi Deus? Vê-se bem que o sr. é agnóstico, para não dizer dualista. É ainda a influência de seu pai ou o Sr teve uma educação religiosa?
Tive uma educação religiosa, como todo o mundo. Mas não por muito tempo. Percebi logo, lendo os gregos, que havia muitos deuses. Por que um só? E por que esse deveria ser o bom? Não poderia perdoá-lo jamais por ser o responsável pela minha vida. E que religião é essa, com seus bancos, sua polícia e seus serviços secretos? João Paulo II é um político, como tantos outros. Pegou a mania de beijar a terra. Bom, não é tão grave. Mas Cristo disse “Meu reino não é deste mundo” e o papa se entende com todos os poderosos do planeta. Meu pai dizia que tudo é possível, neste mundo. Até a Santíssima Trindade. Mas como acreditar nesse monstro teológico? A teologia é mais rica que a literatura fantástica: três seres, entre os quais uma pomba, dentro de um só Deus… Superamos os pesadelos de Wells ou de Kafka. Em compensação, admiro a Bíblia. Essa idéia de reunir num só livro quatro textos de autores diferentes e atribuí-los ao Espírito Santo! Resumindo, eu poderia ter sido… metodista, por exemplo, como qualquer um dos meus avós, mas não católico. Os católicos do meu país pertencem a um gênero que me desagrada. Eles acham que a Argentina é um país essencial, quando todos sabemos que é um país tardio, cuja história não pode ser compreendida sem a referência da Espanha.
O sr. continua se interessando pelas discussões teológicas? Desde os Pais da Igreja não há muita coisa nova.
Atualmente, a teologia está muito abandonada, mas ela é inesgotável, como os romances policiais! E que sacrilégio: procura-se Deus como se se tratasse de um banal assassino. Dizem que Deus é uma personagem onipotente e transbordante de bondade, mas basta um simples zumbido de mosquito para se duvidar disso. As pessoas só falam de política e de esportes. Duas coisas frívolas que criam um sentimento nacionalista. É incrível, não, por parte de um governo? Um chefe de Estado levantar e gritar “Gooool!” Como se pode ser tão ridículo? Os jornais e as pessoas gritam: “Vencemos a Holanda!” Basta que onze rapazes argentinos de calça curta ganhem uma partida contra onze garotos holandeses para que vençamos a Holanda…
O sr. tem viajado muito, ultimamente.
Quando era jovem, eu não gostava de viajar. Agora que estou velho e cego, não páro de fazê-lo. Gostaria de conhecer o Oriente, que para mim resume-se ao Egito e à Andaluzia. E também a Índia, que conheço graças a Kipling. Tenho um convite para ir ao Japão e estou louco para ir. Você pode dizer que, estando cego, não vou poder apreciar. Não acho. Só o fato de pensar “Estou no Japão” já representa uma riqueza. Não consigo ver os países, mas eu os percebo, através de sinais que não sei explicar. Não é nada de extraordinário, acontece todos os dias. Neste momento, sinto a sua amizade, mas não porque você me falou dela. É algo intraduzível. Por que uma pessoa fica apaixonada? Não é por causa do que vê ou ouve, e sim por causa de sinais ocultos que vêm do outro. Bem, quando falamos com alguém, sentimos se essa pessoa gosta de nós ou se lhe somos indiferentes. A gente sente isso à margem das palavras, que geralmente são banais.
Não tenho uma obra, e sim fragmentos. Não sei por que sou célebre. Achava que jamais iria publicar. Depois, achei que eu era uma superstição argentina
O sr. é capaz de sentir também uma paisagem? Pode percebê-la, também, através das vibrações das vozes?
O que imagino pode ser completamente anacrônico. Pode ser que me esteja referindo a impressões que me ficaram do tempo em que eu desfrutava da visão. Agora, fechando um olho, sou capaz de adivinhar algumas cores, sobretudo o verde e o azul. O amarelo nunca me abandonou. Em compensação, perdi o preto. A obscuridade me falta. Curioso, não? Um cego privado da obscuridade. Mesmo enquanto durmo, encontro-me numa nebulosa verde ou azulada.
Com tantas viagens, a idéia de cosmopolitismo que se tem do sr. se confirma.
A idéia de fronteiras e de nações me parece absurda. A única coisa que pode nos salvar é sermos cidadãos do mundo. Vou lhe contar uma história pessoal. Quando eu era pequeno, fui com meu pai a Montevidéu. Devia ter nove anos. Meu pai disse: “Olhe bem as bandeiras, a alfândega, os militares, os padres, porque tudo isso vai desaparecer e você poderá contar aos seus filhos que o viu.” Mas, ao contrário, hoje em dia há cada vez mais fronteiras e bandeiras.
Mas há menos padres.
Como sabê-lo?! Estão disfarçados, hoje em dia. Como meu pai era vegetariano, me mostrou um açouge, para que eu pudesse dizer mais tarde: “Vi uma loja onde se vendia carne.” Talvez ele tivesse razão, foi sem dúvida uma profecia prematura que levará alguns séculos para se realizar.
Muito tarde? As Escrituras aconselham as pessoas a retirarem-se da vida aos setenta anos.
Estou exagerando um pouco, não é?
Não é isso que eu queria dizer…
Eu espero o momento da morte com impaciência, mas na minha família a morte sempre foi terrível. Minha mãe morreu com 99 anos, desesperada. Não é a morte que eu temo, mas a decrepitude. Comigo desaparece uma linhagem, o que é muito doloroso para um amante da genealogia como eu.
Não se preocupe. O sr. não está deixando sucessores.
Você me tranqüiliza. Quer dizer, então, que posso esperar tranqüilamente a morte?
Quanto a isso, não sei. O sr. escreveu, ou disse: “A eternidade me espreita.”
A imortalidade pessoal é incrível, como a morte pessoal, aliás. Acho que foi uma citação que fiz do verso de Verlaine: “E todo o resto é somente literatura.” Cuidado, não sou responsável nem pelo que tenha dito, nem pelo que digo neste momento. As coisas mudam constantemente e nós também. Não vou citar a célebre frase de Heráclito sobre o rio que muda, mas um verso de Boileau: “O momento em que lhe falo já está longe de mim.”
No entanto, o sr. costuma ironizar sobre a morte. Ou sobre a longevidade, “um mau hábito difícil de extirpar”.
Não sou eu que digo isso, é a vox populi. “Não há nada como a morte/para tornar as pessoas melhores./Morrer é um hábito/comum a todas as pessoas.”
Dir-se-ia um Borges! Esse Borges teria medo da morte?
Não. Assim como meu pai, tenho a esperança de morrer completamente, alma e carne. Muitos crentes que conheço vivem aterrorizados. Uns esperam ir para o paraíso e outros temem o inferno. Em compensação, um agnóstico como eu, que não crê nessas histórias, não se acha digno nem de recompensa nem de castigo. Só me resta esperar.